sábado, 23 de abril de 2011


Os mortos do mundo



Exatamente quando eu lia sobre rostos mortos de lótus que desciam num redemoinho, numa correnteza que banhava uma certa, porém vaga, margem... e sobre a qual, esmagando mais rostos mortos de lótus, corria aquele que temia a lua, ou melhor dizendo, o que ela podia revelar-lhe, que ele me fez a pergunta:
– Já teve uma crise existencial?
Eu voltei a acompanhar o cara correndo; descobrindo que, onde havia muros, descortinavam-se mais árvores, flores e arbustos; e chegando onde o córrego silente, mas errante, desaguava num mar sem nome...
– O que você acha? – Respondi finalmente. Várias! Inúmeras! Vivo em constante crise, desde a consciência (ou ocorrência) remota do "existir" e "ser depois".
E senti naquele momento que o homem que corria e encontrava sua carrasca voltava seus olhos para mim. E o outro também... Eu sabia que do outro lado do país, não somente pela rede magnética ou de sei lá o que, ele entendia, porque também, como eu, já havia esmagado rostos mortos em flores de lótus e corrido por caminhos que nossa mente tornavam mutáveis. Sabia qual seria minha resposta, mas queria, talvez, como eu, saber se ainda tinha a mesma companhia.
“E para escapar a essa coisa medonha, atirei-me sem hesitar nas águas pútridas onde, entre muros cobertos de algas e ruas submersas, os túrgidos vermes marinhos devoram os mortos do mundo.” (LOVECRAFT, 2010, p. 43). [1]


[1] LOVECRAFT, H. P. O que a lua traz consigo. In: LOVECRAFT, H. P. O chamado de Cthulhu e outros contos. Trad. Guilherme da Silva Braga. São Paulo: Hedra, 2010.

4 comentários:

  1. Sem “crise existencial” nenhuma mudança é possível. O ser humano precisa dessa situação-limite do ego pra se descobrir cada dia um pouco. Sensacional seu texto!

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  2. Obrigada, Felipe! Também concordo com você. Mas você também há de convir comigo que hoje em dia existem muito poucos afeitos a essa "situação-limite do ego". E as consequências disso não são tão boas assim. Ou, vai ver, nós, que sofremos tais crises, é que somos trágicos demais... rsrs

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  3. Qualquer um que é capaz de enxergar um pouco além do que seus olhos lhe mostram, viverá constantemente em crise. Isso traz o medo do desconhecido e ao mesmo tempo a falta de medo por não conhecer.
    Eu tenho perguntas e não sei as respostas, eu espero coisas que talvez não venham, eu sou insatisfeito... Eis aí a minha crise existencial!

    Interessante os textos e os pensamentos roubados, usados como inspiração e complemento. Muito bom!

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  4. Mas é realmente esse o nosso dilema: não ter respostas para as nossas perguntas, esperar pelo que não vêm e a consequente insatisfação. Também sou insatisfeita! É essa a minha crise existencial!

    Obrigada pela opinião, Clóvis! Os teus textos são inspiradores.

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