domingo, 30 de outubro de 2011



Superfície

Temos alguns monstros aqui dentro e, ora sim ora não, eles nos consomem.
Na superfície, nada de mar revolto; mas o vazio de palavras aqui dentro denuncia-nos. Crise. Pane. Nada pior do que não conseguir saber o que de fato sentimos.
A Ressaca age de dentro para fora, minuciosamente.
Amiudadamente.
Monstros interiores. Monstros interiores.
Mitos. Placebos de uma vida mal sentida.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

 É isso!


Recolher as roupas. Guardar as garrafas. Quebrar as taças. Lavar o sangue. Pegar as malas e fazê-las. Experimentar o pó sobre a cama não usada e sentir o cheiro do sofá há muito vazio. Beijar as camisas. Suspirar pelas lembranças. Recordar. Depois esquecer. Dar as costas. Apagar arquivos. Escrever qualquer coisa num papel sujo. E se despedir.
Hora de partir. De novo e sempre. Isso é a vida. E temos de vivê-la.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

"[...] já foi o tempo em que via a convivência como viável, só exigindo deste bem comum, piedosamente, o meu quinhão, já foi o tempo em que consentia num contrato, deixando muitas coisas de fora sem ceder contudo no que me era vital, já foi o tempo em que reconhecia a existência escandalosa de imaginados valores, coluna vertebral de toda ‘ordem’; mas não tive sequer o sopro necessário, e, negado o respiro, me foi imposto o sufoco; é esta consciência que me libera, é ela hoje que me empurra, são outras agora minhas preocupações, é hoje outro o meu universo de problemas; num mundo estapafúrdio definitivamente fora de foco cedo ou tarde tudo acaba se reduzindo a um ponto de vista, e você que vive paparicando as ciências humanas, nem suspeita que paparica uma piada: impossível ordenar o mundo dos valores, ninguém arruma a casa do capeta; me recuso pois a pensar naquilo em que não mais acredito, seja o amor, a amizade, a família, a igreja, a humanidade; me lixo com tudo isso! me apavora ainda a existência, mas não tenho medo de ficar sozinho, foi conscientemente que escolhi o exílio, me bastando hoje o cinismo dos grandes indiferentes [...]" [1]

[1] NASSAR, Raduan. Um copo de cólera. São Paulo: Companhia das letras, 1992. p. 54-55.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

"A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Homem algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas todos aspiram a sê-lo, obscuramente alguns, outros mais claramente, cada qual como pode. Todos levam consigo, até o fim, viscosidades e cascas de ovo de um mundo primitivo. Há os que não chegam jamais a ser homens, e continuam sendo rãs, esquilos e formigas. Outros que são homens da cintura para cima e peixes da cintura para baixo. Mas, cada um deles é um impulso em direção ao ser. Todos temos origens comuns: as mães; todos proviemos do mesmo abismo, mas cada um - resultado de uma tentativa ou de um impulso inicial - tende a seu próprio fim. Assim é que podemos entender-nos uns aos outros, mas somente a si mesmo pode cada um interpretar-se." [1] [grifo meu]

[1] HESSE, Hermann. Demian. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Record, 2006. p. 16-17.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011


Blankness


 Tudo quanto somos é feito do vazio ensimesmado que nos dá forma. Percorremos limites e corremos pelo desconhecido. E o que são o limite e o desconhecido senão um vazio que queremos preencher?
Tudo quanto há de resposta que buscamos está em nós. Apenas não buscamos formas de ouvir, porque há muito ficamos surdos. Apenas não enxergamos, porque o espelho de nossos dias embaçou na manhã mais fria do ano: aquela em que nos perdemos de novo para nunca mais...
Somos criadores, não apenas criaturas; e vivemos de moldar verdades e de nos perder, porque somos demasiadamente desconhecidos para nós mesmos e, sobretudo, para os outros. Somos o nosso próprio limite e o vazio sobre o qual queremos falar. Não o fazemos porque não sabemos. E, aos outros, somos nada mais que detalhes de sua tosca sobrevivência. Pronunciamos apenas as ínfimas reminiscências das palavras que aprendemos, mas que não sabem traduzir o que deveras nos incomoda.
Tudo quanto nos dá forma é feito do vazio ensimesmado do que somos. E toda palavra que há nas nossas tentativas de tradução pessoal são incoerências do conflito que nos move.


P.S.: O conflito que nos move é o que há do nosso Eu resoluto tombado naquele vazio, o da nossa ignorância sobre o sentido de nossa estadia no inferno do que somos e para que viemos.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

“Bruta flor do querer”


 Um dia, sem querer, por acaso, e estão desfeitos nossos velhos conceitos.
Sem a mais justa adequação, sem Sim e estando ausente também o Não, ficamos com o Talvez e com a única certeza de que o Incerto é o que move montanhas.
No que queriam Vida, demos Morte. No que queriam Amor, demos as costas. Quando quiseram Martírio, servimos Coragem. Quando exigiram Persistência, Covardia.
Estamos sempre a milhas da flor bruta do querer, flor amarela e selvagem. Porque também o somos: ... amarelos e selvagens.
Ou selvagens e amarelos... E ainda rubros e brandos. Estamos sempre a milhas de saciar nossa fome e de dar de beber a quem tem sede de nós numa caixa de música. Porque nossa fome é infinita e a tal caixa é pequena demais para nossas dores e desequilíbrios, por isso dançamos fora dela. Nada presumido ou pressuposto. Tudo em entrelinhas que libertam sempre o Sempre de nosso não quando da exigência do Sim.
Apenas crianças levadas, mal-criadas, a sonegarem licença para o vovô. Apenas velhos rabujentos que sentem prazer ao atrapalharem o programa dos netos jovens. Apenas filhos envergonhando a mãe na fila do consultório. Apenas a vaidade de mostrar a perfeição em um rosto feio depois de uma queda de bicicleta. Apenas as penas que há em sequer sabermos quem somos. Tudo há muito misturado para definir geração...
Se querem firmeza, saudade. Se querem saudade, indiferença. Se querem brilho, opaco. Se exigem compromisso, desleixo. Não damos o que nos pedem. Somos apenas o desequilíbrio e o avesso do que queremos ser.

sábado, 1 de outubro de 2011


O Orgulho e a Vaidade


Para Fernando Pessoa, o orgulho é a consciência (certa ou errada) do nosso próprio mérito, enquanto a vaidade é a consciência (certa ou errada) da evidência do nosso próprio mérito para os outros. Segundo o gênio português, um homem pode ser orgulhoso sem ser vaidoso; pode ser ambas as coisas, simultaneamente; e pode ser vaidoso sem ser orgulhoso.
Parece meio incompreensível encarar alguém que seja vaidoso sem ser orgulhoso, ou seja, alguém que tenha consciência de que o outro sabe de seu mérito enquanto ele mesmo não o sabe. Mas Pessoa explica isso dizendo que vivemos duas vidas: uma exterior e uma interior e que estaria aí a explicação.
A vida exterior é aquela vivida para causar efeito sobre o outro e, por ser vivida primeiro, permite-nos dizer que causar efeito em outrem seria quase sempre a base de todos os princípios do homem, uma vez que este vive ou quer viver, em princípio, o efeito que causa no outro e, apenas tardiamente (na vida interior), a causa desse efeito. Na vida exterior, o efeito é tomado como a causa interior desse efeito, estando o homem, pois, nesta vida, vivendo sob uma inverdade, propositalmente ou não.
Por viverem, desde o princípio, sob a preocupação com o outro, ainda que algumas estejam vivendo a vida interior, as pessoas ainda têm refletindo, nos seus comportamentos e ideias, a vida exterior, que subsiste na busca de ver que os outros reconhecem seus méritos, verdadeiros ou forjados. É a vaidade em ação.
Vivemos atualmente um momento que exalta intensamente a vaidade, quase intrínseca à natureza humana. E eu não recorro à moda ou à estética exclusivamente para apontar isso, mas ao fato de essas duas coisas mais o status sócio-financeiro serem usados como ambições pessoais a definirem também quem é gente e quem não é.

É a vaidade, Fábio, nessa vida [1]...


[1] Referência ao poema "É a vaidade, Fábio, nesta vida", de Gregório de Mattos Guerra.